Chamava-se Maria Conceição da Costa Pinto, filha de Dona Meme e Seu Lourival Antônio da Costa Pinto, seu Antônio Pinto. Naqueles tempos, em lugar de vento seco e chuva rara, homem tinha direito a nome e sobrenome. Já para a mulher, o povo se contentava com apelidos: Ceça, Cecinha, Ceci, Cici. Devia ter seus nove anos quando descobriu histórias de sua cabeça entrando em páginas vazias. Maravilhou-se com a imensidão de lugares que conseguiria visitar apenas de lápis e sonhos nas mãos. Trocava s por z, x por ch, a noite pelo dia, o quarto pelo rio. Todo fim de tarde aguardava o sol cair, pintando as cores nas águas doces, contando peixes, ligando estrelas. Cici inventou reinados para aquela cidadezinha, decretou guerras, prendeu infratores. Fez chegar dragões antes mesmo da luz elétrica, ou até da coca-cola.
Mercedes Maria da Costa Pinto, esse era o nome que estampava a lápide. Foi a primeira vez que soube o nome de sua mãe, quando já nem podida questioná-la o porquê de Mercedes. A teria dito que esse era o nome de sua avó, e da sua bisa, e também da tia de sua bisa. Só não foi o seu porque Seu Antônio Pinto descobriu o passado de todas e proibiu, assim como proibiu Dona Meme a manter seu nome de solteira: Mercedes Soares da Luz. Por esses entardeceres, já tinha seus 17 e passou a assinar as crônicas publicadas no recém-jornal local como Maria Conceição da Luz. Decidiu carregar a história de suas mulheres, reescrever sua própria história. Acreditava em outros tempos, em diferentes rios e até no mar que nunca viu. Já doente, Seu Antônio Pinto prometeu não querer saber mais de sua filha, e nem de sua Luz. Não deu tempo de vê-la partir.
Não lembrava quantos anos tinham se passado desde a última vez que contou 37 peixes no rio, ou conseguiu desenhar uma sereia no mar escuro do céu. Não conseguiu conhecer todos os lugares descritos nos papéis da infância. Não viu o mar. ‘Não’ era a palavra que a acompanhava por toda a vida e, aos 87 anos, percebeu que Cici não tinha ido. Essa negativa talvez fosse a mais marcante no fim de seus dias. A menina do lugar de vento seco e chuva rara havia feito morada em peito já cansado. Não a deixou partir, e nem percebeu. Cici era também sua história, assim como da Luz, e a Mercedes que nunca e sempre foi. Pegou na cabeça todas aquelas histórias, o lápis, os sonhos raros na mão, sentiu o cheiro da água salgada. Não o via, mas sentia as ondas chegando aos pés. Deixou o lápis, papel e os sonhos irem, sabia que esse mar encontrava com seu rio em alguma curva errada. Uma curva perto de onde o entardecer chegava antes, onde o raio pintava a água, que já não se sabia doce ou salgada. Ali onde se enxergava melhor to-das Luzes do sol primeiro.
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